quinta-feira, 15 de maio de 2014

Da ‘Loucura’ à luta antimanicomial


                                                           por Roberto Barros
“A história da nossa psiquiatria é a história de um processo de asilamento, é a história de um processo de medicalização social” essa sentença de Amarante ilustra em poucas linhas a real situação que este domínio de saber se encontra e a constante necessidade de reformulação do mesmo. A psiquiatria surge, com a chegada da Família Real ao Brasil, com o objetivo de colocar ordem na urbanização, disciplinando a sociedade e sendo, dessa forma, compatível ao desenvolvimento mercantil e as novas políticas do século XIX. É a partir do embasamento nos conceitos da psiquiatria européia, como degenerescência moral, organicidade e hereditariedade do fenômeno mental, que a psiquiatria brasileira intervém no comportamento considerado como desviante e inadequado às necessidades do acúmulo de capital, isolando-o e tratando-o no hospital psiquiátrico. Dessa forma o saber e o poder médicos, artificialmente, criam uma legitimidade de intervenção da classe dominante sobre os despossuídos através da nova especialidade - a psiquiatria - da nova instituição - o Hospital Psiquiátrico. O objeto dessa intervenção - o sofrimento mental - é reduzido, através de um artifício conceitual, a categoria de \"doença mental\", subtraindo-se toda a complexidade de fenômenos diversos, singulares e compreensíveis no contexto da existência humana. O Manicômio, dentre outros dispositivos disciplinares igualmente complexos, atravessou séculos até os nossos dias, conformando uma sociedade disciplinar com dispositivos disciplinares complementares num processo de legitimação da exclusão e de supremacia da razão. É incrível como a sociedade ocidental sempre procurou apartar e excluir aqueles que se encontram fora dos “padrões” impostos por um grupo específico de indivíduos que detém certos poderes. No passado isso se deu, por exemplo, com a forma como a igreja tratou os leprosos através do período das Cruzadas e como a mesma em associação com outras instituições posteriores trataram o louco em períodos subsequentes.
Foucault mostra que com o fim da lepra, reside nos loucos o estigma de desvio moral justificando a exclusão destes. Dessa forma, pode-se concluir que as pessoas acometidas pela loucura representam os excluídos da sociedade, que necessitam com urgência desaparecer da visibilidade das pessoas. Assim, hão de carregar sempre com eles este estigma – a marca da discriminação e exclusão.
De certa forma, o espectro que é observado atualmente é uma extensão do que ocorreu durante nossa história. Na Renascença, os loucos eram colocados em barcos e navios e carregados para cidades longe das suas em busca da razão. Havia partidas de navios especialmente para levar os loucos. Quando estes chegavam nas cidades, eram enxotados pelos moradores (característica da exclusão). No entanto, havia locais destinados a colocar os loucos, existindo, assim, a possibilidade de que os que fossem enxotados fossem aqueles provenientes de outras cidades, enquanto que os que ficavam eram oriundos delas.
Marinheiros atracavam em lugares comerciais e ali deixavam os loucos. Estes, quando acolhidos e mantidos pela cidade, eram levados para a prisão. Esse fato torna-se interessante e até alegórica, pois o fato do louco ser transportado de um espaço (local) para o outro através da água remete-se ao que Foucault chama de “prisioneiro da mais aberta das estradas”, ou seja, cria-se uma ambivalência pois o lugar onde o insano estava indo não era sua terra, mas a que ficou para trás também não o era. A terra do louco limita-se à distância de ambas: a que foi sua e a que nuca será. Assim, a forma como os poetas Renascentistas simbolizavam essa travessia ilustrava a aterritorialidade. Literalmente, o insano não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades. E, desde o século XIX, no entanto, estes tem os manicômios que funcionam em sua maioria como prisões, espaços de exclusão legitimado pelos dispositivos dos saberes que foram apropriados pelas práticas médicas. Percebe-se a existência dos manicômios por séculos à fio e frente a essa realidade surgem alguns movimentos que questionam essa ordem das coisas, procurando romper com a tradição manicomial brasileira, principalmente com o fim da Segunda Guerra Mundial. Todas essas experiências são locais, referidas a um ou outro serviço ou grupo e estão à margem das propostas e dos investimentos públicos efetivos. Há forte oposição exercida pelo setor privado que se expande e passa a controlar o aparelho de Estado também no campo da saúde.
Na década de 60, com a unificação dos institutos de pensões e de aposentadoria, é criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). O Estado passa a comprar serviços psiquiátricos do setor privado e concilia pressões sociais com o interesse de lucro por parte dos empresários. Dessa forma, cria-se uma “indústria para o enfrentamento da loucura. Mesmo diante dessa realidade os movimentos questionadores crescem e têm como principal inspiração a experiência de Trieste, na Itália, liderada por Franco Basaglia. Basaglia, em 1971, fecha os manicômios, acabando com a violência dos tratamentos e põe fim no aparelho da instituição psiquiátrica tradicional. Basaglia demonstra que é possível a constituição de uma nova forma de organização da atenção que ofereça e produza cuidados, ao mesmo tempo que produza novas formas de sociabilidade e de subjetividade para aqueles que necessitam da assistência psiquiátrica.
Em 13 de maio de 1978 foi instituída a Lei 180, de autoria de Basaglia, e incorporada à lei italiana da Reforma Sanitária, que não só proíbe a recuperação dos velhos manicômios e a construção de novos, como também reorganiza os recursos para a rede de cuidados psiquiátricos, restitui a cidadania e os direitos sociais aos doentes e garante o direito ao tratamento psiquiátrico qualificado.
Esse grande passo dado pela Itália influenciou o Brasil, fazendo ressurgir diversas discussões que tratavam da desinstitucionalização do portador de sofrimento mental, da humanização do tratamento a essas pessoas, com o objetivo de promover a reinserção social. Na década de 70 são registradas várias denúncias quanto à política brasileira de saúde mental em relação à política privatizante da assistência psiquiátrica por parte da previdência social, quanto às condições (públicas e privadas) de atendimento psiquiátrico à população.
No Rio de Janeiro, em 1978, eclode o movimento dos trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), que faz denúncias sobre as condições de quatro hospitais psiquiátricos da DINSAM e coloca em xeque a política psiquiátrica exercida no país. É nesse contexto, no fim da década de 70, que surge a questão da reforma psiquiátrica no Brasil. Pequenos núcleos estaduais, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais constituem o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). A questão psiquiátrica é colocada em pauta:“... tais movimentos fazem ver à sociedade como os loucos representam a radicalidade da opressão e da violência imposta pelo estado autoritário
A violência das instituições psiquiátricas, dessa forma, é entendida como parte de uma violência maior, cometida contra trabalhadores, presos políticos e, portanto, contra todos os cidadãos. O movimento de reforma sanitária tem influência constitutiva no movimento de reforma psiquiátrica. Nos primeiros anos da década de 80 os dois movimentos se unem, ocupando os espaços públicos de po
der e de tomada de decisão como forma de introduzir mudanças no sistema de saúde.
“ A Proposta da Reforma Sanitária Brasileira representa, por um lado, a indignação contra as precárias condições de saúde, o descaso acumulado, a mercantilização do setor, a incompetência e o atraso e, por outro lado, a possibilidade da existência de uma viabilidade técnica e uma possibilidade política de enfrentar o problema.Somente no final do século XX é que a militância por serviços humanizados consegui às primeiras implantações de Centros de Atenção Psicossocial os CAPS .
Foi em 2001 que a Lei Paulo Delgado foi sancionada no país. A Lei redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios.
As condições da saúde mental no Brasil evoluíram, porém a Luta Antimanicomial não parou. Ainda acontecem manifestações em todo o país no dia 18 de maio, para que se mantenha vivo o cuidado com os doentes, e para que fique claro que eles não devem ser excluídos da sociedade e maltratados como eram antigamente, mas sim orientados e acompanhados para que possam encontrar seu lugar no mundo. O dia 18 de maio também se tornou Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

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